15 de janeiro de 2015

Miguel de braço ao peito


O meu pardalito quebrou a asa, melhor dizendo, o pulso.
Imitando o Ronaldo, numa finta daquelas de pôr os olhos em bico a qualquer um, em disputado jogo de futsal entre colegas, escorrega sozinho e zás, pulso fracturado.

A mãe, desnaturada, cumpria o seu plano de treinos no ginásio, à hora de almoço como é hábito e, depois de suar as estopinhas e malhar a bem malhar, sai e olha para o telemovel: 2 chamadas de um número + 3 chamadas de outro + 2 de outro ainda - Oh pá, a coisa deve ser grave, anda todo o mundo à minha procura, penso.

Logo na primeira tentativa de contacto fico esclarecida, o pardalito está nas urgências, sozinho, assustado e com dores, sem mãe, de asa partida. O sentimento de culpa invade-me - Que raio de mãe vai para o ginásio e deixa a cria sozinha, sem protecção e conforto numa hora dessas? Que raio de mãe abandona assim um filho nas mãos de um desconhecido?

Meto-me no carro e acelero feita louca, numa fraca tentativa de fazer o relógio andar para trás e compensar o tempo perdido na passadeira. Corro para junto do piolho que está corajosamente sentado, junto de uma auxiliar do colégio, de braço pendurado ao peito, com uma gaze manhosa que se esfarrapa e suja tudo, à espera que o chamem para o raio-x. Cumprimento a Dona Tina e dispenso-a do seu papel de substituta. A partir daquele momento, assumiria o controlo da situação e não deixaria abandonado o meu herói que espera, estoicamente, sem lágrimas, o desenrolar da aventura.

Somos chamados para o raio-x, entramos e a enfermeira diz " a mãe tem de sair". Não, a mãe não tem de sair, a mãe fica." Mas é perigoso, mãe, estamos a falar de radiações e isto não custa nada, o Miguel fica bem". Bem sei, mas daqui não saio, nem arrastada. O pardalito precisa da mãe e tem direito à sua presença. Mantenho-me firme na decisão e a enfermeira, vendo, provavelmente no meu olhar ou tom de voz que a decisão é irrevogável, entrega-me a bata de chumbo que visto qual escudo protector contra as maléficas radiações. Se bem, que com avental ou sem ele, com chumbo ou sem ele, naquele momento nada me impediria de estar com a cria e de lhe dar o conforto possível.

A simples presença da mãe, um olhar, um piscar de olho, uma mão sobre o ombro, uma festa na cabeça, uma conversa parva para desanuviar o ambiente, são alguns dos recursos que uma mãe usa com aquele poder mágico que só as mães têm quando se trata de diminuir as dores de um filho.
Acredito mesmo que nessas horas, qualquer coisa de fantástico se apodera das mães e elas ganham, como que por magia, poderes sobre humanos.

E pronto, o resto da história já dá para adivinhar. Chamada ao médico, informação de que a fractura se confirma, gesso colocado com uma larachas pelo meio para diminuir a ansiedade e o medo, e vamos finalmente almoçar que bem merecemos.
O pardalito tem direito a tudo o que lhe apetece. Afinal, são 15.30  e ele não come desde ontem ao jantar. Maldita a hora que o miúdo não quer comer o pequeno almoço e só come a meio da manhã na escola. Maldita a hora que a mãe, desnaturada, o deixa sair de casa confiante que ele cumpre o que está combinado e come o lanche da manhã. Afinal, o jogo de futebol ao intervalo é coisa mais importante que a fome que eventualmente possa ter. Perder um ou dois minutos da bola, isso é que não pode ser.

Saídos, do hospital, passamos ainda pela escola para ir buscar as coisas dele, tratar das burocracias devidas mas, principalmente, tenho de ser honesta, para que ele possa receber a atenção e o carinho dos colegas e professores.

Entra na escola, qual herói desaparecido em combate e, como já tocou para a saída é imediatamente cercado por todos. Nota-se o ar agradado com que recebe toda aquela atenção e responde dezenas de vezes às mesmas perguntas.

Já em casa, o carinho dos colegas continua via facebook e sms, mas agora é hora de confronto com novas rotinas caseiras. Regresso no tempo cerca de 10 anos e volto a ter ao meu cuidado a cria para despir, vestir, ajudar a calçar, dar banho, vestir o pijama, cortar a comida...

O pardalito está no ninho, ao meu exclusivo cuidado e, permito-me, finalmente, descansar e relaxar. Está tudo controlado! - penso - está magoado, mas protegido; está com dores, mas aqui.
Nada como ter debaixo da nossa própria asa o nosso pardalito de asa partida.


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