13 de setembro de 2014

O colo que não te dei


Hoje, apenas partilho este belíssimo texto da nossa querida Sónia porque há palavras que não se dizem e textos que não se escrevem.

O que é ser quase mãe? Como é ter um filho quase a nascer e perdê-lo? Histórias em que os sentimentos de culpa se misturam com a raiva e com a esperança de mães que perderam os seus bebés em avançado estado de gestação.
Sandra Almeida: perdeu a Mónica às 37 semanas e meia de gestação (nove meses incompletos)
Foi no dia 25 de maio de 2005 que Sandra soube que estava grávida. A emoção e a felicidade deram rapidamente lugar aos enjoos e aos vómitos, que por sua vez deram lugar a desabafos próprios de quem está farto, fartinho. «Arre! Se eu soubesse que isto era assim tinha ficado quieta!» Sandra Almeida não podia imaginar que, meses mais tarde, a frase havia de ficar a ecoar na sua cabeça, como um castigo divino.
No dia 28 de dezembro, Sandra foi fazer a primeira CTG (cardiotocografia - mede os batimentos cardíacos do feto, os seus movimentos e as contrações uterinas) e a bebé ficou dez minutos sem se mexer. A médica pediu para que, antes do próximo exame, marcado para dia 4 de janeiro, a mãe se certificasse de que comia qualquer coisa, para espevitar a pequena Mónica. E assim foi.
No dia 4 de janeiro (sete dias antes da data prevista para a indução do parto), a assistente da obstetra começou à procura do foco cardíaco da bebé. Sem sucesso. Chamou a médica, que também não conseguiu descobri-lo, e que decidiu fazer uma ecografia para ver o que se passava. «Passa-se alguma coisa?», perguntou Sandra, de olhos postos no teto e coração em sobressalto, enquanto a médica espreitava para dentro da sua barriga. A médica, de ar grave, decretou: «Tem de ir imediatamente para o hospital.» Sandra insistiu: «Mas passa-se alguma coisa?» Foi então que escutou as palavras que jamais imaginara ouvir: «Não lhe posso garantir que a sua filha esteja viva.»
Sandra não se lembra do caminho para o Hospital de Santa Maria, não se recorda de dar entrada, como se uma grande névoa lhe tivesse toldado a consciência nesse momento. Sabe que levava nas mãos um envelope que dizia «FM» e que sentia as pernas a tremer e que uma enorme incredulidade se ocupava dela. Ao chegar junto da enfermeira encarregue de a observar, largou num pranto. A profissional fez-lhe festas na mão e tentou sossegá-la, enquanto lhe ia fazendo nova ecografia: «Tenha calma. Isto às vezes são uns sustos que a gente apanha mas não passa disso. Então diga-me cá: de quantas semanas está? E é menino ou menina?» E, de repente, silêncio. Silêncio absoluto. E depois do silêncio, novas palavras impossíveis: «Ai, Sandra, infelizmente tenho de confirmar... a sua filha faleceu.»
«Naquele momento, eu deixei de existir. A minha vida não tinha mais razão de ser. Eu, mãe, matei a minha filha. As mães são as que protegem no ventre. Eu nem disso tinha sido capaz. Toda a gente diz que não há sítio melhor para um bebé do que a barriga da mãe. E a minha barriga, afinal, era um perigo.» Sandra, grávida de 37 semanas e meia, tinha a filha morta dentro de si. Depressa vieram mais médicos, foi declarado o óbito e, a páginas tantas, era como se ela não fosse mais que um fantoche, uma personagem de ficção que um argumentista decide que anda para a esquerda ou para a direita, para a frente ou para trás, como se nada daquilo fosse real. Não era possível que fosse real.
Sandra e Paulo foram encaminhados para um quarto, onde ficaram sozinhos e abraçados, em lágrimas. Era preciso induzir o parto e puseram-na a soro. Nessa noite, longa, tão longa, os dois escutaram 11 partos. Onze crianças a nascer. E eles ali, onde tantas vezes se tinham imaginado, com uma filha sem vida para dar à luz. Que luz, se ela não podia vê-la?
Sandra Almeida, então com 32 anos, passou trinta horas em trabalho de parto. Desesperado, o marido quis saber o porquê daquele sofrimento desnecessário. «Porque é que não lhe fazem uma cesariana e acabam com isto de uma vez?» Os médicos explicaram então que a cesariana iria limitá-los em termos de tempo. «A Sandra ainda é jovem, vai querer uma nova gravidez, a cesariana vai obrigá-la a esperar dois anos. Se for parto normal, em breve podem estar a engravidar novamente.»
Ela não se ralou com as dores inúteis do trabalho de parto. Ao mesmo tempo que as contrações iam apertando, Sandra resolvia mentalmente os problemas que se seguiriam: o enterro, avisar as pessoas, como receber os pais. Não pregava olho e, por isso, na noite de 5 para 6 de janeiro, puseram-lhe um medicamento no soro para a ajudar a dormir: «Tem de descansar. Daqui a pouco vai passar por um parto difícil e precisamos da sua ajuda.»
Quando acordou, Sandra sentiu que tinha chegado a hora. Mónica ia nascer. Paulo tinha ido a casa tomar um banho mas ela não se ralou por estar sozinha naquele momento. «Para que é que ele ia assistir ao nascimento da filha morta? Qual é a beleza disso? Além do mais, achei que aquele era um momento meu e dela.» E, assim, às 8h45 de sexta-feira, dia 6 de janeiro de 2006, nasceu a fórceps a sua menina. Dia de Reis e a sua rainha nasceu sem chorar. Só o silêncio, o vazio e a expressão chocada da médica, a olhar o bebé calado. A obstetra só foi capaz de balbuciar: «A sua filha é perfeita.»
Mónica pesava 2,715 kg e não tinha sinais de sofrimento. Simplesmente parecia dormir. A enfermeira veio ter com Sandra e perguntou: «Quer ver a sua filha?» A resposta foi perentória: «Não!» A profissional ficou calada um momento e insistiu: «Tem a certeza?» Sandra foi brusca: «Já lhe disse que não!»
Seguiu-se a desolação. O marido a chegar, aos gritos, a perguntar pela filha que já tinha seguido para a morgue. O abraço dos dois, tão forte. A emoção de todos os que estavam em redor, médicos, enfermeiros, pouco preparados para lidar com a morte, eles que se especializaram em lidar com a explosão da vida, de novas vidas.
Depois, a força de Sandra a vir ao de cima. «Pronto. Já está. Falta o enterro e vamos começar a vida outra vez.» Pediu para tomar banho, queria estar em condições para quando as pessoas começassem a chegar. «Eu não queria fugir. Se fugisse de enfrentar a dor ia ser muito mais difícil. Mais valia ter todos os embates de uma vez.» E foi também por isso que no dia em que teve alta quis ir buscar sopa a casa da mãe. Paulo inquietou-se: «Mas... sabes que vão lá estar os vizinhos, sabes que vai haver perguntas e conversas...» Sandra sabia. E não tencionava esconder-se. As perguntas e as conversas haviam de surgir inevitavelmente. Mais valia encará-las desde o primeiro dia. Foi o que Sandra fez.
Chegar a casa, no domingo em que teve alta, também esteve longe de ser fácil. O quarto da bebé pronto, as roupas da pequena Mónica penduradas. Tudo à espera de quem nunca chegou.
A autópsia estava marcada para segunda-feira, dia 9. Na noite anterior, Paulo avisou a mulher que iria ao hospital ver a filha. Era a última oportunidade que tinham de a conhecer. «Passei a noite a pensar: vou, não vou, vou, não vou. Quando ele se levantou, eu levantei-me também. Ele perguntou: "Tens a certeza?" Tenho.» Quando lá chegaram, tremiam como varas verdes. «Ela estava toda enroladinha, muito bem penteada. Quem tratou dela fê-lo com muito carinho e isso foi muito bom para mim. Estava muito serena. Estava bem, em paz. Era tão bonita. Os olhos muito rasgados. O meu marido foi-se muito abaixo. Às tantas perguntou se eu queria tirar uma fotografia. Disse que não. Era macabro de mais. Disse-lhe: "Olha bem para ela e memoriza-a." E assim foi. Eu estive sempre de braços cruzados a olhar para ela. Arrependo-me de não lhe ter tocado, de não lhe ter feito uma festa. O meu marido afagou-lhe os cabelos. Mas eu sabia que ela estava fria e não quis ter esse contacto frio com ela.»
Nesse momento a três, Sandra falou em silêncio com a filha. «Mentalmente fiz-lhe promessas. Prometi-lhe que nunca ia ser esquecida. E que as 37 semanas e meia que ela esteve comigo iam sempre fazer sentido. E que o facto de ter partido não significava que não permanecesse, para sempre, no meu coração.»
No dia 11 de janeiro, dia previsto para o parto, foi o enterro, em Benfica. Um enterro com muita gente, muitos amigos, muita comoção, muitas lágrimas. Não é fácil para ninguém ver um caixão pequenino a entrar pela terra dentro. «No dia 11, em vez de estar a dar um berço à minha filha, ali estava eu, a dar-lhe um caixão. Em vez de a cobrir com lençóis bordados, ali estávamos nós a cobri-la de terra. É muito difícil, muito difícil. Dias depois começou a chover. E eu sentava-me aqui neste canto do sofá a chorar. Só pensava: a água está a cair no caixão da minha filha... Zanguei-me muito com Deus, sabe? Muito. Disse-lhe barbaridades. Espero que ele compreenda. E releve.»
O tempo foi passando e, com ele, a dor amenizou. Mas Sandra nunca deixou de falar na sua Mónica. Falava muito dela. Sempre. E aí começou a censura. «Tens de começar a deixar esse assunto», diziam uns. «Esquece!», exclamavam outros. «Já está na altura de partires para outra», sugeriam também. «Tens é de ter outro para esqueceres isso!» Ou ainda: «Tu és nova, ainda vais ter uma catrefada de filhos!» Ou pior: «Tu nem chegaste a conviver com ela, olha pior era se morresse mais tarde!»
Subitamente, a incompreensão. Como é que podiam querer que esquecesse a sua filha? Como podiam sequer imaginar que um novo bebé substituiria o anterior? Como era possível que pensassem que o facto de não a ter tido no colo diminuía a sua dor? Foi então que percebeu que a dor que rodeia a perda gestacional é uma dor feita de silêncio. E então Sandra falou mais alto. Mais vezes. Contra tudo e contra todos. Porque falar na filha era cumprir a promessa que lhe tinha feito. Porque falar nela, relembrá-la, minorava o seu sofrimento.
No dia 28 de setembro de 2006, Sandra Almeida soube que estava de novo grávida. No momento em que viu o teste sentiu-se feliz mas foi sol de pouca dura. A partir daí foi um pesadelo. «Estive nove meses apavorada. Porque eu nunca soube porque é que a Mónica morreu, a autópsia não foi conclusiva. E então sentia que a minha barriga não era um lugar seguro.» Até que, no dia 24 de abril de 2007, às 6h01 da manhã, nasceu Vasco, o segundo filho de Sandra e Paulo.
Já passaram cinco anos sobre a morte de Mónica. Quando lhe perguntam quantos filhos tem, Sandra responde sempre «dois»: «Um está na terra e a outra está no céu.» Vasco tem 4 anos e sabe perfeitamente que tem uma irmã, anjo da guarda particular que olha por ele, lá em cima. E até nas paredes de casa a bebé tem o seu lugar: a imagem de uma ecografia está ali, lado a lado com a fotografia do pai, da mãe e do irmão. É por isso que Sandra conta toda a história sem se comover uma única vez. Não é por ser dura, não é por ser fria. É por ter resolvido bem o assunto dentro de si. Por ter chorado tudo o que quis, tudo o que precisou. Por não ter escondido o sofrimento, como se fosse uma loucura só sua, um exagero. Por ter cumprido a promessa que lhe fez, naquele dia em que a conheceu: a de nunca, mas mesmo nunca, a esquecer.
Liliana Mendes, 33 anos: perdeu o Miguel às 36 semanas de gestação (nove meses incompletos)
Quando viu os olhares dos médicos, fixos na ecografia, Liliana sentiu um calafrio: «O que é que se passa? Está tudo bem com o Miguel?» A verdade é que, quando lhe responderam, ela já tinha compreendido. Ser enfermeira ajuda a decifrar olhares, a interpretar expressões. E aqueles que ali estavam, em choque perante uma morte inesperada, eram os seus colegas de trabalho no Hospital Cuf Descobertas, alguns mais que colegas, amigos. O coração do seu primeiro filho, Miguel, tinha deixado de bater. «Fiquei em choque. Só pensava: porque é que isto tem de me acontecer a mim, que todos os dias ajudo bebés a nascer?» Sim, porque Liliana não é só enfermeira. É enfermeira de parto e de puerpério. Uma ironia cruel.
Liliana passou 12 horas em trabalho de parto. «Doze horas a sofrer em troca de nada. Em vão.» Confessa que se lembra das coisas em modo de retalho, aos bocados, como flashes de um filme mau. «Acho que só caí mesmo em mim quando ele nasceu. Quando fui para o bloco de partos achava que aquilo tudo ainda ia ser engano e que ele ia chorar. Mas depois ele nasceu, levaram-no e não ouvi chorar. O bloco ficou em silêncio. E aquele silêncio invadiu o espaço e invadiu-me a mim. Foi o pior momento de todos. O pior momento da minha vida.»
A equipa, feita de colegas e amigos, sabia que Liliana havia de querer ver o seu filho. Por isso, não houve perguntas. Trouxeram-lhe o menino, embrulhado numa manta, e puseram-no ao seu colo. «Era um bebé gordinho, muito bonito. Estive com ele ao colo, a chorar, até que apaguei. É algo que nunca vou perdoar à anestesista. Ela deu-me medicação para terminar com o meu sofrimento mas isso roubou-me aquele momento. E aquele momento era único. Uma colega e amiga, que esteve sempre comigo, garante que eu me despedi dele, mas eu não me lembro. E queria lembrar-me.»
O segundo momento mais difícil foi o da alta. Sair do hospital de braços vazios, levar a mala, entrar no carro. Sem barriga, sem bebé, sem alegria, sem esperança, sem alento. «Depois foi o deparar-me com a incompreensão dos outros. As pessoas acham que o facto de não termos conhecido o bebé não nos dá direito à dor. Sempre que eu falava, calavam-me. "Mas para que é que estás a falar disso?" E sempre que eu ia ao cemitério perguntavam-me: "Mas porque é que vais lá outra vez?" Eu sentia necessidade de ir ao cemitério todos os dias porque era lá que estava o meu filho. Era uma coisa quase física. Eu precisava daquela proximidade.»
O marido era outro que não falava do assunto. Simplesmente não falava. Liliana acredita que ele tenha sofrido muito, mas nunca o partilhou consigo. «Cada um viveu a sua dor para o seu lado. Cada um fechado em si. Durante o período da licença de maternidade, quase não saí de casa. Não falava com ninguém. A minha médica de família achava que eu não estava em condições para ir trabalhar mas eu fui. Ficar fechada em casa também não estava a ajudar-me. Mas quando voltei ao trabalho, tive de encarar mulheres grávidas e partos e foi um suplício. Era uma afronta. O bloco de partos magoava-me. Fazia-me reviver tudo. Eu estava a trabalhar no mesmo sítio onde o meu filho nasceu morto. Estava a ajudar mulheres a terem os seus bebés, enquanto eu tinha perdido o meu.»
Um ano depois de perder o Miguel, Liliana pediu finalmente ajuda psicológica. Um apoio essencial que lhe permitiu compreender que o facto de não ir todos os dias ao cemitério não significava que tivesse esquecido o filho.
Além do apoio psicológico, também foi importante ter descoberto a Associação Artémis, que ajuda quem passa por uma perda destas. «Descobri o fórum, onde outras mães falavam da sua dor e então percebi que não estava sozinha, que não era maluca. Que podia sofrer por um filho que não tinha nascido com vida, que era normal que sofresse. Que as outras também sofriam, não era só eu.»
Mas a maior ajuda de todas foi ter engravidado de novo. Uma alegria ensombrada, claro. E que começou logo menos bem. «Às seis semanas tive um descolamento de placenta. Vim para casa e em casa fiquei, até ao fim. Houve sempre muita ansiedade. Comprei um aparelho e estava sempre a ouvir o bebé, imensas vezes por dia. O medo era tanto! Às 34 semanas estava completamente descompensada. Chorava por tudo e por nada, não dormia, não comia, estava uma pilha de nervos. A minha médica internou-me. Eu pedia-lhe para induzir o parto mais cedo e ela dizia: "Eu não quero ver esse bebé na incubadora, eu não quero ver esse bebé na caixinha!" E eu não me ficava: "Ó doutora, antes na caixinha do que no caixão!"»
Tal era a sua vontade de ver o filho longe da sua barriga, e vivo, que se pôs a subir e a descer as escadas do hospital onde estava internada para provocar o parto. «Era como se sentisse que comigo ele não estava em segurança. Na minha barriga ele não estava protegido. Mais valia que nascesse depressa, que eu depois logo o protegia cá fora.» Conseguiu. No dia em que se pôs a escalar degraus, o Tiago nasceu. «O parto foi facílimo e eu estive supercalma. Era como se estivesse ali o anjinho a proteger o irmão. Quando o ouvi chorar foi um alívio enorme. Como se estivesse estado sem respirar durante nove meses e agora, finalmente, respirasse de novo.»
Nos dias que se seguiram, Liliana passava o tempo a mirar o filho, vivo, saudável, sereno. Tiago tem quase 2 anos e é a alegria da casa. Ajudou muito a ultrapassar a dor da perda do irmão. «A perda de um filho não se supera. Habituamo-nos a conviver com a ausência e com a dor. É verdade que a atenção já não está tão concentrada no Miguel, mas não há um único dia em que não pense nele.»
Carla Priegue, 38 anos: perdeu a Leonor e a Sofia às 32 semanas de gestação (oito meses)
Já tinha uma filha com 4 anos quando decidiu, com o marido, ter outro bebé. Carla Priegue engravidou rapidamente, foi seguida e, quando fazia a ecografia das 12 semanas, recebeu a notícia: eram dois. «Só não caí porque já estava deitada. Foi um baque. Mas baque maior tive quando o médico disse: "Vamos conversar."» A sua gravidez tinha um risco. «Era uma gravidez monocoriónica biamniótica, ou seja, cada bebé estava no seu saco mas tinham uma placenta comum. Eram gémeos verdadeiros e o médico alertou para uma síndrome, que podia ocorrer, que era a síndrome de transferência feto-fetal, em que um dos gémeos passa a ser o dador e o outro o recetor: um dá todo o alimento, nutrientes e oxigénio ao irmão, ficando sem nada, o que se traduz num risco de vida para um deles ou para ambos.»
O médico particular encaminhou-a para o Hospital de São João, no Porto, onde devia passar a ser acompanhada. Carla ficou em pânico. Mas o médico Nuno Montenegro, do São João, tranquilizou-a e até lhe falou numa cirurgia que se fazia em Londres, de separação da placenta, caso viesse a ser necessário.
Ecografia atrás de ecografia, tudo corria bem. A Leonor e a Sofia estavam ótimas, muito equivalentes, não havia uma maior do que outra, e às 32 semanas Carla começou realmente a acreditar que tudo ia correr bem.
Num certo domingo, porém, Carla começou a sentir uma dor de lado. Pensou que seria uma pressão, normal aos oito meses de gravidez, e desvalorizou. Foi trabalhar na segunda e na terça-feira mas, na noite de terça para quarta não conseguia estar deitada com dores. Ainda deixou passar essa noite mas na quarta-feira, dia 11 de dezembro de 2008, de manhã, foi à urgência. Quando fez a ecografia, o médico disse o que mais temia: «Está a acontecer a síndrome feto-fetal.»
Nesse instante, tudo se precipitou. Uns médicos diziam que ia para Londres, outros que ficava internada ali. Ligaram-na ao CTG e a enfermeira não encontrava o foco cardíaco. Veio outra. Carla estava desesperada: «Não encontram? O que se passa? Digam-me!» Chamaram o médico, vieram dois com um ecógrafo portátil. Procuravam um batimento cardíaco, mas nada. Carla largou a chorar. A médica pôs a mão na mão dela e perguntou: «Já percebeu, não já?» Carla soluçava, incrédula: «Mas foram as duas?» Sim. Tinha perdido as duas.
A médica comoveu-se muito. «Não sei o que hei de dizer-lhe», repetia. Carla só conseguia chorar. Puseram-na num quarto sozinha e foi então que pensou: «Acabou. Pronto. Acabou-se. Parei de chorar, limpei as lágrimas da cara e disse: "Vou ter de ser forte. Tenho uma filha em casa, que precisa de mim, e eu vou ter de aguentar isto. Já está, não há nada a fazer, é acabar com isto e pronto.» Perguntaram-lhe se queria parto normal ou cesariana e ela escolheu cesariana. Não lhe importava se depois tinha de esperar muito por outra gravidez, não lhe importava o depois, importava-lhe o agora. E agora, naquele momento, ela só queria sofrer o mínimo possível, dentro do tanto que estava a sofrer.
E assim foi: vieram buscá-la para o bloco de partos, adormeceram-na e fizeram a cesariana. Quando acordou, estava livre. «Pensei: acabou.» Nunca teve coragem de as ver. «Tem dias em que me arrependo, tem dias em que acho que foi o melhor que fiz.» O tempo no hospital passou-se. Carla estava apática, a incutir em si própria uma força artificial. O pior foi quando teve alta. «Quando se sai do hospital é que dói a sério. Saí vazia, saí sozinha, saí sem nada. Aí é que se dá o baque. Depois, foi a cremação. As minhas filhas levaram vestidas as roupas que eu tinha escolhido para o dia do seu nascimento. Foi muito triste. Eu não assisti. Fiquei à espera, à porta do cemitério.»
À Inês, a filha mais velha, Carla Priegue explicou que as manas estavam muito doentes e que tiveram de ir para uma estrelinha no céu. «Ainda hoje, dois anos depois, ela me fala nas irmãs: "Será que as manas têm brinquedos, lá em cima?"» Foi Inês quem «salvou» a mãe de ir ainda mais ao fundo. «Agarrei-me a ela como a uma tábua de salvação.»
Carla não esperou para pedir apoio psicológico. Sentia-se esmagada pela culpa. «Se eu senti uma dor no domingo porque é que não fui logo ao hospital? Se tivesse ido tinham-me feito uma cesariana, as bebés tinham nascido mas se calhar salvavam-se. A culpa é muito grande. É um "se" que fica aqui atravessado na garganta e acho que vai ficar aqui para sempre.»
Mal teve ordem médica para engravidar novamente, Carla não hesitou. Em dezembro de 2009 estava grávida. Ficou feliz mas, claro, com medo. Ainda assim, pensou: «Isto não volta a acontecer. Uma coisa destas não acontece duas vezes à mesma pessoa. Por isso, toca a relaxar!» Mas a ecografia das 12 semanas não lhe permitiu descansar. «Quando vejo a médica levantar-se, a meio da ecografia, pensei: isto não está a acontecer-me! Ela chamou outra médica, começaram a falar uma com a outra como se eu não estivesse ali e, às tantas, disseram: "A bebé tem uma bexiga demasiado grande, não é o fim do mundo, já vi muitas a regredirem mas... vamos aguardar." A mim só me ocorria perguntar: mas que mal fiz eu?»
Com efeito, às 15 semanas, confirmou-se: a bexiga continuava a inchar, os rins estavam a deixar de funcionar, e Carla teve de interromper a gravidez. «As pessoas não sabiam o que me dizer. Eu acreditava em Deus mas agora... devo dizer que a minha fé foi muito abalada. Muito mesmo. Revoltei-me muito contra Deus. Mais uma vez, saí do hospital vazia, mais uma vez saí do hospital sem nada nos braços. E pensei: é desta que não me levanto.»
Enganou-se. Tornou a engravidar. Nove meses em sobressalto. Mas o João nasceu e, nesse instante, sentiu uma explosão de alegria e de alívio. «Agora sim, vou poder respirar. Acho que valeu a pena. O João ajudou no processo de perda, deu-me uma grande felicidade, que aumenta de dia para dia, mas acho que vou viver toda a vida a sentir-me incompleta. Afinal, tive cinco filhos. E só dois é que estão comigo.»
Artémis: uma associação que ajuda quem fica com o colo vazio
Chama-se Associação Artémis e existe, como IPSS (instituição particular de solidariedade social) desde 2005. No entanto, o fórum online nasceu antes, em 2001, para que as mulheres pudessem desabafar e conhecer outros casos parecidos com o seu.
Manuela Pontes é a fundadora. «Nos anos 2000 e 2001 sofri duas perdas gestacionais no primeiro trimestre, com oito semanas. Após a segunda perda surgiu a ideia de criar uma associação que ajudasse mulheres como eu, que se sentiam sozinhas numa dor rodeada de incompreensão.»
O objetivo da Artémis é dar apoio psicológico e emocional. Esse apoio é feito de duas formas: através do grupo de autoajuda (terapia de grupo) e do acompanhamento psicológico individual ou de casal. «Insistimos mais na terapia de grupo. Temos verificado que a partilha ajuda no processo de luto. Em grupo, só os nomes é que são diferentes. Tudo o que sentem é igual. Ali são compreendidas, falam a mesma língua. Ao contrário do que sentem fora dali, na esfera familiar e de amigos, que desvalorizam todos os sonhos que foram projetados naquela gravidez.»
Manuela Pontes sentiu o mesmo quando aconteceu consigo. «Quando engravidamos, toda a gente festeja. É uma alegria, há presentes, ursinhos, beijinhos, lágrimas de emoção. Quando perdemos o bebé não há uma tristeza correspondente. As pessoas dizem: "Deixa lá isso!" Isso? Como é que não se há de enlouquecer com esta reação, tão fria? E, assim, as mulheres começam a compactuar com o silêncio. E a sofrer para dentro.»
E é assim que surgem casos dramáticos como o de uma mulher, que Manuela Pontes conheceu na associação, que se mutilava, com um garfo, na barriga. «Ela perdeu cinco bebés. Sentia-se um monstro, uma assassina. E sofria em silêncio. E maltratava-se em silêncio. É por isso que é urgente falar destes casos e compreender que a dor existe, é real. Deixem estas mulheres fazerem o seu luto.»
«É preciso aprender a gerir a culpa»
A culpa é, de todos os sentimentos, o que mais persegue quem sofre uma perda gestacional. Sandra Cunha, psicóloga que dá apoio na Associação Artémis, diz que é difícil, muito difícil, lidar com uma morte que ocorre dentro do corpo da mulher: «É como se não soubessem ser mães. Como se sentissem que o seu corpo não sabe proteger os bebés que carrega, como se fosse um corpo assassino. Isto é muito violento. É preciso compreender que a culpa é irracional, não faz sentido. É preciso aprender a gerir a culpa.»
Depois, para piorar a situação, vem o silenciamento da sociedade. As pessoas não fazem por mal, claro. Mas ao pedirem às mães em luto que esqueçam, que atirem para trás das costas, ao desvalorizarem assim a sua dor, estão a causar mais dor. «Não há palavras certas. O ideal é que família e amigos estejam presentes e que não façam comentários. Estas mães não querem comentários, querem que as oiçam. Assim, a melhor atitude é a de estar, simplesmente, sem juízos de valor. Claro que se um familiar vir que aquela mulher vive para aquela lembrança, que não faz mais nada senão viver e reviver aquela perda, todos os dias, então deve encaminhá-la para uma ajuda técnica. Mas subtilmente, sem imposições.»
Para Sandra Cunha é urgente a instituição de um protocolo, em todos os hospitais, que inclua uma avaliação psicológica pós-perda. «Há muitas mulheres que não têm fatores externos de suporte que lhes permitam seguir em frente. E, por não terem sido detetadas atempadamente, desenvolvem depressões graves, patologias sérias, que fazem o Estado gastar mais dinheiro do que se houvesse essa triagem e as que precisam fossem logo acompanhadas.»
Na terapia de grupo na Associação Artémis são sobretudo as mães que marcam presença. Os pais vão pouco. «É uma questão cultural. O homem ainda acha que não pode chorar, não pode dar parte de fraco. Tem de ser o pilar, tem de estar bem. Mas isto não é bom nem para eles nem para as mães, que invariavelmente se sentem muito sós na sua dor. As mães queixam-se muitas vezes disso e acham que eles não falam do assunto porque já esqueceram. Não esqueceram nada. Têm é diferentes maneiras de lidar com a perda.»
Entrevista a Marcela Forjaz, obstetra e autora de O Grande Livro da Grávida(editora Esfera dos Livros)
A perda gestacional é um acontecimento raro. Tem ideia da percentagem de casos?
_Os números na literatura são muito díspares sobretudo porque englobam idades gestacionais diferentes. Em 2006, por exemplo, sei que houve 417 mortes fetais tardias (a partir das 34 semanas) para cerca de 104 mil nascimentos, o que dá qualquer coisa como 0,4 por cento. Em 2009 tivemos 380 mortes fetais. A verdade é que é um acontecimento cada vez mais raro porque há vários fatores a contribuírem para a sua diminuição: o diagnóstico mais precoce das complicações, o melhor controlo dessas situações e, se necessário, a indução do parto pré-termo. De resto, também grande parte das anomalias cromossómicas ou estruturais dos fetos são detetadas precocemente, o que leva à interrupção precoce de gravidezes que possivelmente acabariam mais tarde em morte fetal.
O que pode estar na origem de uma morte fetal?
_Podem ser causas fetais, maternas ou placentares. Nas fetais, destacam-se as cardiopatias, síndromes malformativas, alterações cromossómicas não detetadas (hoje mais raro) e infeções bacterianas. Nas causas maternas, a diabetes, a hipertensão, infeção e sepsia. Nas causas placentares, a transfusão feto-fetal da gravidez gemelar, os acidentes do cordão... a amnionite (inflamação da membrana que rodeia o feto).
Porém, em muitos casos a autópsia não é conclusiva. Porquê?
_Por vezes é difícil concluir o que aconteceu. Segundo a literatura, as mortes inexplicadas vão dos 15 aos 35 por cento, dependendo da fonte. Acredito mais nos 35 por cento.
Um parto natural, de um feto morto, é a melhor opção?
_O parto natural é a melhor forma de preservar a fertilidade dessa mulher. Além de que uma cesariana implica sempre mais riscos e a última coisa de que uma mulher que sofreu uma perda gestacional precisa é de mais riscos. Há uns anos era bem pior. Não havia analgésicos e as mulheres tinham de passar por tudo com dores inúteis, digamos. Hoje, com a epidural, é mais fácil todo o processo.
É recomendável que a mãe veja o filho?
_O que está aceite e é consensual é que a mãe veja o filho e faça o luto. Quando uma mulher opta por não ver o filho, a imagem que tinha idealizado não será suficiente para acalmar a sua dor. É sempre preferível sensibilizá-las para que vejam, para que se despeçam.

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